8 de ago. de 2023

O silêncio: meu sinthoma, meu meio de vida e minha ruína relacional. Não posso falar, a fala me falta. A fala é minha falta? Ou é a falta que me fala através dele, o silêncio?

Se algum dia todas as pessoas morrerem, me sentirei culpada pela demanda que não enderecei, porque não tinha palavras.

18 de fev. de 2022

Tem um gato que fica arranhando a porta do meu quarto de bagunça. Todo dia ele senta de frente pra ela e desfere umas patadinhas obstinadas e constantes, quase rítmicas. Parece que esse gato gosta é de caçar encrencas. Talvez encrencas sejam o novo whiskas, mais macias por terem sido curtidas ao sabor do tempo e ganhado notas de envelhecimento precoce. Talvez o problema sejam os gatos de casa que, não podendo caçar coisas mais interessantes, precisam se contentar com emoções menos saborosas. A questão é que às vezes ele consegue entrar lá, assim, quando a porta tá meio entreaberta. Ele entra e fica se esfregando nas bugigangas. Eu acho que esse gato tem um fetiche sadomasoquista. Um fetiche felatório, lambe-lambe. Mas o problema mesmo é que quando ele tá lá, as coisas ficam todas mais bagunçadas, todas molhadas, todas arranhadas. E quando ele sai, dá o maior trabalho pra voltar tudo pro lugar. Eu queria assim, ser uma Marie-Kondo dos quartos de bagunça, pra não ter que ficar trancando a porta. Agora mesmo, aquele animal tá arranhando e eu não consigo dormir. Não me resta muita opção a não ser deixar ele entrar. Um dia eu quero, tipo, não ter quarto nenhum de bagunça nenhuma de gato nenhum.



17 de dez. de 2021

a-void

De tanto me repetir nos braços alheios, eles se tornam meus: polvilíneos, sequenciais, quantitativos.

De tanto evitar o vazio que meus próprios e únicos braços me desamparam, me evito, envolto e não volto.

No novelo de braços que só aumenta, formo ferida, casca, e me mantenho casta no núcleo que me guarda de mim.


14 de nov. de 2018

Ao meu amor não consumido (que me consome)

Eu penso em você esporadicamente, mas a intensidade nessas vezes é tanta que demoro dias para me recuperar.
Eu só estou sentada aqui pensando sobre o seu beijo e sobre você (por que foi que nós nunca nos beijamos mesmo?).
De tudo, me resta uma impressão e uma certeza:
- eu nunca amei ninguém antes de você;
- eu nunca amarei ninguém depois de você.
Não porque não gostaria, mas pela impossibilidade mesmo. Você é impossível.
Agora passo a desejar muito que um dia você volte. Estes dias são um looping de tristezas intermináveis e vontades inalcançáveis. Insaciada, sua presença rarefeita me deixa insaciada.
Todas essas palavras já devem ter sido ditas vezes não contáveis, mas só tenho essas pra tentar traduzir (agora já tô falando com você pelo texto, imaginando que um dia magicamente você lerá e voltará pra mim).
Agora me lembro de novo que só nos vimos uma vez. Um par de horas que se tornaram tudo.
Uma criança me disse ontem que as pessoas precisam saber que nada é tudo que se quer. Eu não sei se eu sei.

31 de ago. de 2018

Faço anos

Não sei que moções enviesadas pode ter o destino, que decidiu fazer cruzar nossos caminhos. Não sei quais foram as suas escolhas até aqui, ainda menos quais serão à frente, meu bem. Sei nada nada sobre a vida, veículos automotores ou pranchas de surf. Nunca nem ouvi falar daquela comida que você disse preferir. Meu vocabulário de francês se resume a 3 palavras, e de japonês à uma.
Quero te dizer que tenho muito medo do que não sei (e olha que é quase tudo!), mas ainda mais do pouco que pareço estar sabendo. Esse pouco é que me coloca em pânico.
Faço anos, meu bem. Anos que não saberia numerar. Faço anos que nunca senti jamais saber.

13 de ago. de 2018

Asas do tempo

Saí apressada, era muito tarde. Achei que tivesse mais tempo, mas me perdi nas horas.
Entrei também apressada, depois de atravessar toda a cidade, ônibus trânsito pessoas e, claro, estava atrasada (mas com uma determinação que só aquele tipo de urgência conseguiria provocar).
Obstinada a não mais olhar para o tempo perdido, me coloquei as pautas do dia e perseverei.
Uma hiância, dois dias, desassossego, tempo voando e você pousou, depois de entrar por aquela porta semi aberta.
Entrou e ficou. Tranquei a porta com nós dois lá dentro.
Nunca pensei que amaria um pássaro, mas você nunca mais passará. Voa, tempo!

25 de jan. de 2018

O craquelado e o ser

A dor vai começando em qualquer lugar até chegar nos ossos. Perdoe-me, não é bem que seja em 'qualquer lugar', sei muito bem onde ela começa. Começa lá onde alguma coisa me lembra que um dia fui descolada de um corpo, lá onde fui decepada e colocada para fora. Desde então, tento me grudar pedaço por pedaço, lasca por lasca...e o resultado fica sempre um tanto quanto disforme, como um souvenir de porcelana que caiu e nunca mais pôde ser inteiro, ainda que um hábil e paciente restaurador tenha conseguido fazer um bom trabalho; porém, o resultado é uma réplica e, por mais que seja bem próxima à original, o tempo vai completando o serviço que a queda iniciou.
Se tenho motivos pra me sentir inteira? Claro que sim. Mas é que fica meio difícil quando o craquelado é constituinte. Sorte a minha que os ossos são revestidos por aquela camada que chamamos 'pele', limite frágil entre o parecer e o completo desnudamento do estrago.
E tem dias que até a pele sofre.

20 de ago. de 2017

Coisa curiosa a vida. Você está aí e eu estou aqui. Poderíamos estar juntos, ter feito uma viagem ou só tomado um sorvete. Poderíamos ter brigado, ter sido mais sinceros ou ido comer aquele doce típico. Eu poderia não ter passado meses pensando no que aconteceu, por uma culpa que não sei do que é. E você poderia não ter tido medo de falar a verdade. Teria sido melhor. Ou não. Coisa curiosa a vida das pessoas.

5 de mai. de 2017

Sobre o abandono do objeto e a identificação

No meu casaco preto de lã tem uns pêlos de um animal que não é meu. Eles não estavam há duas semanas atrás, mas já estiveram antes: outro bicho, cores e tamanhos diferentes mas, essencialmente, os mesmo pêlos. Me repeti já tantas vezes nessa sensação de ter me apropriado de partes não minhas, de ter levado embora cacos e restos de outros, que não tenho certeza de quais são os meus pertences. Quero dizer, estes pêlos aqui, que só consigo enxergar em suficiente claridade, pertencem agora a mim? Devo me livrar deles, devolver ao possuidor original, ou só apagar as luzes?

3 de mai. de 2017

A um amor de outono

Menos de 3 dias e, seguramente, 3 noites inteiras. Esse foi o tempo do nosso amor, que prefiro descrever como trágico, embora tenha sido maravilhoso. Depois, uma semana de conversas apaixonadas, declarações, juras e, por fim, vácuo. Te escrevo pra dizer que minha mudança repentina se deve ao fato de que estou eu mesmo mudando e (meu deus!) - como estou confuso - preciso de um tempo. Na verdade, minto; não estou mudando, apenas me enganando. Mas nada disso importa, o que é importante e eu quero que você saiba é que não suportei me ver tão nítido em você, preciso de um oposto para continuar me enganando. Isso e mais o fato de que tenho medo de me machucar; eu sei que parece meio cliché, meu bem...e eu até tentei inventar mais uma nota de rodapé nessa página, te dizendo que tinha medo de machucar você, mas a edição não foi concluída e ficou assim, sem nota mesmo. Eu tenho tantos problemas na minha cabeça e, de alguma forma (a mais louca possível), eles me dão motivo pra continuar essa minha vidinha; disso eu também tenho medo, de ser feliz, mesmo que eu repita muitas vezes que um dia quero ser. O que seria de um homem sem os seus problemas? Meus problemas são os meus culhões. Tenho tanto medo que ele se materializa no meu corpo, você viu. Mas não posso me desnudar tanto, não posso me encontrar tão vulnerável, pois que prefiro viver perdido. Perdido, meu amor, assim como nós. Não me julgue, guarde as coisas boas; é só lá que elas podem ficar, as boas coisas, na lembrança; assim elas se farão sempre presentes, mesmo ausentes.

25 de fev. de 2017

Tenho em mim um ódio dilacerante. Principalmente pelas pessoas que me amam. Tenho ódio porque elas me fazem humana, à medida que me colocam essa miragem de poder conter-se no outro; tenho ódio porque me vejo, de relance, através delas e o que vejo, bem...é mal. Odeio todas as gentes que me fazem sentir a dimensão do desfalecimento, naquele ponto onde não consigo mais suportar porque não me alcanço. Nessas situações, tento colocar nomes que expliquem a aflição, mas não há nomeação no mundo capaz de traduzir aquilo que ultrapassa essa linha, de até onde já fui antes. E nessa fronteira imaginária, entre eu e o outro, existirá sempre um terreno onde nunca poderei pisar.

24 de fev. de 2017

Ramona (réplica)

Você notou como as velhas de coque gris sempre usam grampos de cabelo maiores e mais dourados?
Até hoje nunca encontrei ramonas como aquelas.
Notou que, quando você compra uma caixinha de ramonas, elas vão lentamente desaparecendo? Atrás da cama, embaixo do carpet, dentro da gaveta...cinquentacemmil ramonas, não importa, sempre que precisar de uma, terá que buscar na caixa (se ainda restar alguma).
Acho que comprar ramonas é isso: saber que elas se perderão para sempre. Eventualmente, poderei encontrar alguma, mas que não servirá sozinha.
Tenho pressa de usar coque grisalho e descobrir o segredo de onde encontrar ramonas que não desapareçam.

29 de set. de 2016

Sofro de um passado pendente, pungente.
Mania de dizer que o tempo apaga. Acaso não são as lembranças que machucam, ainda que delas não nos recordemos?

21 de jul. de 2016

Um conto para Marcelo

Marcelo, não queria te dizer, mas estou subtraída de mim mesma.
Tudo o que eu sabia de mim agora não importa mais. Meu desejo foi obliterado pelo seu. Meus dedos, se pudessem pensar, não pensariam outra coisa que te tocar. Na sua ausência, eles me tocam, mas não é a mim, é a um corpo estranho feito de pedaços daquilo que ainda insiste em não desaparecer da memória (sabe que quando se gasta muito uma lembrança, ela se apaga, né, Marcelo?).
Não queria te contar nada disso, mas esses mesmos dedos querem te tocar também com palavras. Essas palavras que sempre nunca descrevem o completo da experiência.
Mudei-me de mim, sem perceber. Pra fazer morada na sua pele. Deve ser isso que quer dizer "estar na sua".

1 de jun. de 2016

A bolha e sua magia de conter o vazio, e de respingar no instante o resto do passado.

9 de mai. de 2016

um sujeito eclipsado
resolve pousar no meio da sala.
de lá de onde não pode se ver
o sujeito agoniza no esquecimento.
o eclipsamento do sujeito
se deu por razões ainda não conhecidas.
sabe-se apenas que foi destituído
da capacidade de querer.
quiseram consertar o sujeito
dar-lhe explicações prontas para vestir.
ofertaram-lhe algumas técnicas
que se diziam tiro e queda.
foi assim que o sujeito foi abatido
restam agora pedaços finos e leves
que se quedam no ambiente.
como o elefante, o sujeito embaraça
por não saber de onde nem como nem por quê
se encontra desarmado.
o rubor aquece o sujeito
que pode agora costurar novas peças
no seu sobretudo de marfim.

4 de out. de 2015

2 de set. de 2015

Treino de romance ou como nasce um sedutor pedante em 2 tempos

Tempo 1: o horror
No ônibus, um casal de adolescentes está sentado no banco à frente de uma mãe com seu filho de uns dois anos e meio (certamente, menos que três anos). O menino vai quieto até que o casal da frente começa a se beijar e ele fala "éécaaaa! Que beijo estranho! Écaaa, que nojo!", repetindo isso algumas vezes.
Tempo 2: a curiosidade frente ao horror e a repetição
Passados alguns poucos minutos, o menino volta-se à mãe e pede-lhe beijos, ao passo que ela, sem sucesso, tenta se negar, oferecendo as bochechas. A criança não se contenta, claro, e vai beijando todo o rosto da mãe, nomeando os lugares e lambuzando-a de saliva (provavelmente).

31 de ago. de 2015

Um conto para Maurício

Maurício não gosta de intimidade. Maurício é distante, ausente, diferente. Pegar na mão, nem pensar. Acompanhar no teatro nem pensar.
Maurício é muito macho, gosta de futebol, boteco e foder selvagem. Homem como Maurício, só existe ele mesmo. Homem com um culhão a mais.

Maurício não sabe que precisa que lhe falte um dos culhões.

Ah, Maurício, nem te conto. Nem te conto o que penso de você. Não consegue ouvir o vento batendo e fazendo barulho ao passar pela brecha? Mas eu consigo ouvir bem lá no fundinho, o sibilo do seu. Desejar sem saber.
Se não tivesse uma falha aí, meu sopro não encontraria saída em você para se tornar suspiro.

28 de ago. de 2015

Uma pontuação de Valor

"O valor não se dá por si mesmo, senão pelo que se agrega". Acordei com a frase do meu analista latejando do lado direito do meu cérebro. É interessante como certos conteúdos filosóficos e sempre muito óbvios adquirem uma presentificação de efeitos palpáveis no curso de uma análise.
Valor equivale a uma coragem; há sempre o risco do depósito, da responsabilidade que é sua por depositar no objeto algo que é seu. É sempre arriscado não receber de volta, embora o retorno que vem só pode vir na forma de uma falta (a-riscado), pois que um sujeito só pode trocar porque não possui.
Penso agora naquela pessoa angustiada, se debatendo por não querer aceitar que não é completa, evitando desperdiçar seu precioso valor nos objetos. Talvez o medo do retorno da falha, que viria a denunciar a sua própria, é que a paralise. E penso também na minha teimosia em tentar agregar valor lá onde não existe espaço para isso.
Penso, ainda, em muitas outras coisas. Mas já cansei de escrever. O valor deste delírio depositado aqui é o retorno do eco vazio.

30 de out. de 2013


Percebo-me em um movimento recente de relativização; não digo isso em relação ao meu pensamento, senão daqueles que me procuram com suas angústias. No início, "a culpa é sempre do Fidel" e o meu trabalho é sempre levá-los à relativizar, até o limite (sim, porque há o bendito e às vezes ele não é transponível). Quanto a mim, a relativização me ajuda a saber aguardar (coisa que às vezes também é irritante). Não ter expectativas é difícil, mas o atravessar o limiar é coisa muito pessoal e até contraditória, já que é um caminho solitário, mesmo que eu os acompanhe nessa solidão. Muitas vezes, a minha presença ali é o que basta; muitas vezes, o aparelho auditivo imaginário do meu analista é o que basta para o que digo fazer efeitos em mim, silenciosamente de início e depois com mais estrondo. São tantas as vezes que uso o meu tempo com ele apenas para confirmar o que eu já sabia; menos vezes consigo um insight, ou saio de lá com algo novo para pensar, uma conexão nova feita, algo para o qual nunca tinha olhado... ainda assim, vale muito a pena - e pena eu digo no sentido mais terrível do dicionário - estar ali, com essa presença, à parte continuar solitariamente.
Os muros que a gente inventa, as pedras que a gente coloca, tudo isto só pode ser quebrado e retirado pela gente mesmo. E não me venha dizer que entende, empatia não é consciência e, mesmo se fosse, a consciência é sua; então não pense que você sabe do que estou falando e não me procure achando que eu vá saber alguma coisa, porque até de mim, que sou eu, ainda estou tentando saber.
Ideal de Eu e Superego, vocês são uns malditos. Mas sem vocês, eu não seria eu e eu nunca poderia vir a ser num futuro.

21 de ago. de 2013

O pote de mel

O pote de mel está lá; tão doce que é impossível não cair no mesmo erro e lambuzar-se repetidas vezes. Até que se esvazie. E apareça outro pote, com outro mel.

2 de abr. de 2013

Cassandra

Diz-se que quando a ilusão acaba, se sofre. E quando não se tem ilusão nenhuma? Quando se acredita que não é mais possível enganar-se e algo vem e nos acerta, algo nos irrompe e, nesse sentimento, se descobre que a luta é para manter a ilusão viva, pois que sem isso morreríamos?
Nossas conexões são evanescentes, por isso escrevo, para provar que o que passa, não é bem que passe sem antes nos causar uma tempestade. Passou; passou um furacão levando e trazendo coisas.
Tento me enganar que não estou sozinha, que quem me acolhe não o faz com base nas escolhas anteriores. Tento me enganar que eu estou livre desses artifícios. Tento apagar tudo o que me traga a sensação de que não sou eu que estou ali, senão a representação de algo que - meu deus - nem em mim estava! mas me foi posto, porque apagando isso, apago também a certeza de que não sou para o outro além de uma imagem, e de que o outro não é também ele um espelho nu.
Nu no espelho, é como me sinto. Pintando ali uma roupagem menos 'carne, menos 'pele', mas também menos verdadeira. Carne, pele e verdade são quase antinaturais. Mas, desde que avistadas de relance, já não podem ficar de fora do circuito.
Se sofre de força. Da força que se faz para manter a ilusão.

14 de jan. de 2013

Nunca vi o saudosismo com bons olhos pois sempre me pareceu coisa de quem não quer viver no presente, coisa de quem se nega a olhar para o instante que existe, como que preferindo se alhear à ameaça de que no instante seguinte morre-se um pouco. É um pouco como escrever, cada letra deixada aqui é eternizada; mas eternizar diz de uma cristalização que também requer uma morte: a letra redigida morre, pois que já não está encadeada dentro de mim, está posta fora e dali ela não vai para lugar nenhum. Por isso, ler o que já escrevi sempre me causa um estranhamento, como se outro 'mim' tivesse dito, um mim que já não sou eu, um mim que não pode voltar a ser eu. E eu sempre fico meio triste, porque me dá saudade desses outros 'mim' que residiram no meu corpo um dia. Odeio sentir saudade e odeio que a saudade tenha uma função de resgate de memória; odeio também que o resgate de memória traga sentimentos vividos. Acho que por isso me desfaço tão prontamente de coisas do meu passado, tenho mesmo uma certa ansiedade por me desfazer delas. À parte de existir uma memória, tenho o direito de esquecer. Então, por que escrevo?
Conta-se uma história para que ela morra ou para que viva eternamente?

7 de jan. de 2013

Eternamente retornar. Não é realmente incômodo se deparar com elementos já vivenciados, que se repetem nessa odisséica, embora normalíssima, vida cotidiana? Se perguntar 'o que mesmo de você há nisso?', 'por que é mesmo que ISSO se repete ASSIM, desse jeito?'. Ok, talvez não seja possível isolar o traço, o registro primeiro, a marca que se imprimiu e em torno da qual bordeamos todo o tempo, que nos diz que somos assim e não assado, mas que se esconde e não nos deixa saber por que somos assim e não assado. Sujeito-efeito-causado. Resta fazer dessa repetição uma piada pessoal, já que a velha conhecida ironia não pega bem.

1 de set. de 2012

Desatenta

Há dez anos eu comprava meu ticket liberdade. Mas esqueci de olhar o verso, onde - certeza - estavam as instruções de uso.

30 de ago. de 2012

Inocência

O que dizer da inocência senão que ela se relaciona com uma certa ignorância de que somos agentes dos nossos problemas? Ignorância que só existe fundamentalmente, pois todo homem sabe muito mais do que aquilo que diz. Desde a origem, somos todos culpados: culpados por desejarmos o impossível.

13 de mai. de 2012

Luto

Estou pensando na estrutura ficcional da vida. E em como nossa realidade - e digo toda nossa realidade - é constituída por estas cenas amarradas, costuradas, embelezadas. Estratégia nossa para deixarmos aquela vista, que é tão horrível, mais suportável. Em como vou descobrindo, à custa de muita perda, essas memórias e construindo em cima delas uma nova versão, uma versão mais próxima do real que elas são. E aqui, neste ponto, penso na dor; em quanto é doloroso esse processo. Ir perdendo, aos poucos, aquela imagem ideal, formulada para dar uma ilusão de identidade, de reconhecimento, de encobrimento das fendas. Falo; e à medida que falo, não quero mais escrever. Tudo parece uma grande feita cômica.
Como Pessoa diz, 'és importante pra ti, porque só tu és importante pra ti'. Verdade esmagadora. E aquele trecho que não sai da minha cabeça: '...no nível do pequeno a, a questão é inteiramente diferente daquela do acesso a algum ideal (...) Aí está onde nós, analistas, somos levados a vacilar, nesse limite onde se coloca a questão do que vale qualquer objeto que entre no campo do desejo. Não há objeto que tenha maior preço que um outro...'. Então, 'ser especial' pra alguém, ou achar que alguém o é pra vc, é só uma tentativa de manter o Eu intacto, um arremedo de resposta à questão de quem somos, do que somos pro outro. Questão de resposta inalcançável além da exposição de uma falha primordial, uma falha que demonstra a insuficiência da nossa linguagem em nomear tudo.
Retomo o título do meu blog: 'Carta de Delírio'; de qualquer maneira, deliramos desde sempre. Ainda que não se saiba disso.

11 de jan. de 2012

E a análise?

Vivem me perguntando para que serve uma psico-análise. Eu sempre fico em dúvida do que responder, de como responder porque, confesso, sinto um pouco de vergonha - não sei por que - em dizer que uma análise serve para aprendermos a 'amar melhor', como se expressou lindamente alguém. E acho que meu titubeio advém de saber que o amor é uma tentativa de dar conta da diferença sexual, da impossibilidade do rapport sexual entre os seres. E, sendo uma tentativa de dar conta, é uma amarração; isso equivale a dizer que o amor é também ele um sintoma. 
Ama-se um outro na esperança de que, de dois, se possa fazer Um. Isso é bem bonito de se dizer, mas é impossível de se realizar. E é só depois que nos damos conta disso que podemos dar um desdobramento melhor pras nossas relações, porque aí não existe mais um ato iludido, mas com responsabilidade. Sair do 'me complete' e ir para o 'me suplemente', é a isso que se deve chegar.
Responsabilizar-se pelo que se deseja é assumir o que somos, assumir esse significante que somos diante do outro, para-ser, enfim, o que não pudemos ser até ali, e não mais para-esser - 'parecer' - no semblante onde estivemos.
O que dizer? O mundo é mesmo uma linda foda mal dada. E tenta-se loucamente substituir o impasse da diferença dos sexos pelo amor. Amor que é... o que era mesmo que eu ia dizer? Ah! Como eu amo as criptografias...
(...)Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que triste são as coisas, consideradas em ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam pra casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem(...)

(... )O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas, pretas, amarelas.
Pra que tanta perna, meu Deus?
Pergunta meu coração.
Porém meu olhos 
não perguntam nada (...)

Meus olhos apenas olham toda a movimentação, pessoas indo, pessoas vindo... pra onde, não se sabe. Mas meu coração está inquieto. E inquieto todo o meu corpo, minha carne que, sabendo-se viva, não pode saber-se mais do que isso.
Em todo saber insiste um limite e, por ora, o que sei é que palpito. Nada mais. E o nada faz-se tudo.

7 de nov. de 2011

Aos moralistas: um soneto du Bocage

Soneto do pau decifrado
É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,
Bem que duas gamboas lhe lobrigo;
Dá leite, sem ser árvore de figo,
Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro:
Verga, e não quebra, como zambujeiro;
Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;
Brando às vezes, qual vime, está consigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro:
À roda da raiz produz carqueja:
Todo o resto do tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem pau-santo mais negreja!
Para carualho ser falta-lhe um U;
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar meta-o no cu.

27 de out. de 2011

Ainda sobre o Amor

Lacan, no Seminário 8, aponta uma articulação entre amor e desejo; para ele - e se usa de um texto de Platão para tanto - o amor só existe onde exista um amante, aquele que deseja, e um amado, aquele que é desejado. Há que se fazer um apontamento na direção da falta, o desejo demarca isso. O amante é aquele a quem falta - pois que deseja; além, ao amante falta saber o que lhe falta; o amado seria aquele que tem o que ao amante falta, porém, este não sabe o que tem. Por isso, à pergunta 'o que vc ama em mim?' não há resposta, já que uma vez nomeado o objeto - ou agalma, como aparece no texto - este passa a não ser mais, sempre será outra coisa (o desejo é movediço e nos escapa à significação).
Neste sentido, a psicanálise avança um passo, pois à demanda de amor do paciente, o analista não tem saída: ele sabe que não tem. O analisado busca saber o que tem e direciona uma demanda de saber para o analista; à esta demanda, o que encontra é uma falta. A falta, por sua vez, remete ao desejo - isso articula a passagem da demanda de saber à demanda de amor.
Daí a fórmula de Lacan: 'amar é dar o que não se tem'.

19 de out. de 2011

O Amor

Escolhi um título pretensioso. Pretensioso porque sei que não posso falar sobre este tema. O Amor, devo dizer, tem-me fixado a atenção por estes dias; do ponto de vista teórico, tendo a confessar que está mais claro como pode ele ser o único sentido da vida.
Sentido, eu no passado. E este é um delírio de luto; e com o luto não se luta, deixa-se abater para depois retornar.
E esse depois, é só no agora que poderá ser vivido. Por ora, é só depois que poderei viver no agora. Por ora só posso apreendê-lo, esse amor, fora da experiência. Não posso experienciá-lo. E não posso justamente porque quero. Maldita dialética do desejo, que coloca no futuro o que só pode ser vivido no hoje.
"Sinta o vento, veja a cor! Se acomode, tome jeitos; vá ao médico; não pense no agora; pense no agora; não problematize, deixe como está!". Todos estes conselhos, mando todos eles à merda - em minha cabeça, pois que ainda não me desvencilhei de uma educação católica e tenho dedos com palavrões.
Que me desculpem os românticos, mas que eu os abomino. Abomino e tenho inveja - não uma 'invejinha boa'. Tenho uma inveja galopante, porque vejo ali o que um dia eu fui, o que não posso ser mais. Não hoje, nem amanhã. Depois de amanhã, que é outro termo para 'não existe'.
Por esta altura eu paro, já que o delírio está demasiado cansativo. É, o amor é delirante e demasiado cansativo.

20 de jun. de 2011

Sobre moluscos acéfalos, mal-entendidos e cismas transicionais

Havia se distanciado das coisas que lhe eram mais caras. Havia perdido a vontade de conhecer o gosto das coisas novas e esquecido o sabor das antigas. Ostracismo; um amigo nomeou o processo. Ela não compreendeu; quem dera suas cascas fossem de madrepérola!, pensou.

1 de abr. de 2011

Onde 1+1 não são 2

Saio da janela, digo que preciso dormir. Tem sido uma luta constante encontrar alguma conexão. Quero mesmo é ficar bisbilhotando na web; tudo o que for possível para saber, ainda que este saber seja inundado dos meus achismos, daquilo que eu, pretensamente, penso que a pessoa quis dizer naqueles textos.
Não foi sempre assim. Mas hoje percebo que sempre existe uma ilusão dentro de outra e, cada casca que vamos retirando, acreditando que chegamos na carne, é só mais uma casca. Como bonecas russas. Só que infinitas. Problema é que a última, aquela que não deveria ser oca, nunca é encontrada. Sempre sobra um resto, um real.
Mas vamos lá, simplesmente é necessário. O engodo é necessário. Acreditar que se está no mundo, quando não se está, é necessário.
Querer acreditar não é o mesmo que acreditar... e assim vou me contradizendo, caminhando em direção contrária àquela do desejo. Aliás, o que é o desejo? Desejo existe?
Como alguém como eu, que não acredita em conexão, posso procurar uma? E o pior, pensar que encontrou? Confrontar, e cair no próprio ridículo do confronto. Falar e perceber que é comigo mesmo que falo.
A perfeição nisso tudo é a não conexão; duas pessoas que não acreditam em conexão só podem se conectar na falta dela. Ou seja, tanto faz. O '1' é só o 1, sozinho, ainda quando é 2. Nem gosto dessa palavra 'conexão' mesmo... soa relação, que soa engano... e assim, vamos engodando-nos todos, cada um à sua maneira, ou à maneira do Outro.

7 de mar. de 2011

O Prazer da Carne e o Real do Corpo

Disse no blog do Espaço a, da Ana Suy, que nada tinha a dizer sobre o Carnaval; minutos depois me ponho aqui a escrever sobre. É que Carnaval nos mobiliza; uns a pular e sacudir ao som dos batuques, outros a se recolherem reclamando dos batuques. Fato é que não conheço ninguém que aprecie 'pular' o Carnaval e, me parece, há uma onda modista daqueles que falam mal dele, assim como em temporada de Big Brother. Ainda assim, é uma festa muito difundida e que deve gerar lá seus lucros, não sei a quem.
Não sei definir o que é Carnaval, a não ser pela memória dos desfiles do tempo que tinha televisão; mesmo assim, sou das que não apreciam. Seja porque não gosto de aglomerações, ou não goste da 'música' ou, ainda, porque não tenha registro nenhum desta festarada, dos bailes que saudosamente falam, aqueles onde ainda se podia apreciar toda a essência da festa, dizem. Com essência preservada ou distorcida, sempre se chamou Carnaval, sempre se chamou a festa da carne, o prazer da carne, do corpo... do mesmo blog da Ana, 'o que pode ser mais real que uma fantasia?' ela se pergunta, me pergunta. E eu digo, o que é mais real que uma fantasia é o corpo, este que é idolatrado e ao mesmo tempo olvidado durante este movimento de batucadas e desfiles de nus fenomenais, de plumas e ritmo; o corpo não simbolizável, não nomeável; este sobre e com o qual se festeja e com o qual se penitencia, penitenciária nossa.

22 de fev. de 2011

O Menos-um fora do redemoinho

Falar sobre o Gozo tem algo meio de impossível - não era bem essa palavra que eu queria usar, mas na falta de uma melhor, uso-a. Quando se consegue, é sinal que a coisa anda boa.
Como é que se pode estacionar e não ser mais transitório? É a pergunta que tenho me feito... aliás, ando falando em primeira pessoa - e numa segunda também, mas que não é um 'tu', é 'umaoutraeumesma' -, não tenho mais idéias pra inventar contos.
O Gozo é um redemoinho, como aqueles vídeos que as pessoas gravam no meio dos tufões, dos furacões que ameaçam o câmera-man; você vê ele ali pertinho, quase encostando e, mesmo que a morte também esteja quase encostando, o cara continua ali, filmando, meio que hipnotizado por aquela cena. Talvez seja isso, uma cena que te hipnotiza e te mantém ali, parado, petrificado, esperando pela morte que nunca vem. Soou pesado essa da morte, né? Porque sabemos que ela vem. Agora ou depois. Mas no Gozo, tem algo de contraditório entre esperar pela morte e pela não-morte; porque parar é ter medo de morrer, mas ao mesmo tempo é morrer.
Parados, sabemos que ainda temos todas as chances do mundo. Em movimento, sempre há menos uma chance. De dar certo; de dar. No Gozo, de movimento mesmo é só a repetição. E ali, estamos protegidos do mundo, mas sob ameaça de nós mesmos.

9 de fev. de 2011

Felicidade

Felicidade é, por um momento, se sentir completo. Pretenso dizer isso, uma vez que digo de uma impossibilidade: ser completo.
Somos seres de muitos furos e vivemos de uma nostalgia, daquilo que nos foi um dia tudo, do tudo que um dia fomos.
Por isso nunca é o bastante. Não nos basta só fazer sexo, há que ser com aquela pessoa, a que me agrada, a mais bonita, a mais gostosa; não nos basta a nutrição por ela mesma, há que ser aquele prato tal, aquela bebida tal, naquele lugar tal.
Mas há momentos em que podemos nos encontrar com essa sensação dita felicidade: é quando descobrimos o que, para nós e somente para nós, é importante; aquilo que nos faz bem e que não nos estaciona. Um nome e uma cara de pau tremenda, pra assumir.
Ser feliz é um ato solitário, assim como é solitário viver.

1 de fev. de 2011

A dor de viver/a dor de morrer

Destroçado, o olhar de Luci, antes cheio de ilusões, é agora um mar de aflição. Sentada na areia, sobre um castelo que vai se desfazendo, ela assiste o baile de vento e ondas que batem nas pedras furadas, desgastadas pelo tempo. Nem as pedras resistem, ela pensa. Ao menos lá, onde as ondas batem, é um disfarce perfeito de esconder lágrima.
E os pensamentos são palavras que rasgam a garganta, ela grita. As palavras todas na boca, ela cala. Seu corpo imóvel é morada de uma dor tátil. Luci deseja, impotente, bailar o baile de vento e ondas, deixar à mostra também ela seus muitos furos, seu corpo despedaçado. A doçura do mar chama. Imersa, Luci ainda consegue tatear sua dor.

3 de out. de 2010

Era um fim de tarde. Me lembro que eu estava sentada na soleira de casa com minhas galochas novas quando ela chegou. 08 anos, eu acho.
Não senti medo; minha avó enferma me botava medo. Suas mãos eram frias e o olhar comprido. A boca frouxa entreaberta a pedir mais uma colherada. E aquele ar de complascência de quem sabe que o fim se aproxima.
Pensava nela assim, coisa de criança.
Mas a morte, ela não bota medo em ninguém.

14 de jul. de 2010

Urros

Daqui, do escuro
eu olho, acuro
no grito do apuro;
não vejo, auguro
conjeturo, comensuro...
além eu fulguro.
No espelho afiguro
e a imagem censuro;
prematuro, procuro,
inauguro, suturo;
emolduro, enclausuro
e preso, me curo!
Transfiguro e inauguro
um novo fu(tu)ro
rasuro, costuro, me aturo
e me atiro, juro.

15 de jun. de 2010

O possível de uma relação inexistente

Falar, para além de uma função organizadora, tem uma função social. Nunca entendi direito porque eu não me dava muito bem no social; essa é uma construção que ainda estou fazendo. Quando se fala, espera-se do outro uma resposta ratificadora daquilo que se disse (e aqui, ratificar não necessariamente quer dizer concordar); a questão está é que esta espera, é do Outro que esperamos, do nosso próprio eu-social. E aí está todo o trabalho do analista, o de não responder dessa posição alienante, mas de Outro lugar.
Quando a resposta que as pessoas esperam não vem, é um vazio que é devolvido... isso tem a ver com a construção de que eu falava: minha resposta sempre foi o silêncio. Hoje em dia, ele não está mais tão presente, o que me coloca em outro problema: como responder sem esperar um envolvimento daquele que fala com o que ele fala? E mais, como não me envolver com o que é dito?
Li alhures que a psicanálise é uma peste. Concordo. Uma vez experimentada, não há como dela sair, não há mais como falar sem nada dizer, não há mais como alienar-se a uma fala vazia. O que se espera é outra coisa, aquilo que se chama um sentido pleno.
Falar é, mais do que tudo, uma relação sexual, naquele ponto de uma relação possível, já que ela inexiste.

3 de jun. de 2010

O Solista

Saber que a vida não tem sentido não é para qualquer um. Para ser poético, é um dom pelo qual se luta constantemente, infindavelmente. Se me expresso melhor, queria mesmo dizer que o dom está em continuar vivendo sob essa ameaça, se assim posso chamar a falta-a-ser. Dói e por isso não se arrisca nem dizer, porque a palavra é ela própria uma ameaça, um prelúdio de ação, que mesmo assim age. Uma vida sem sentido. Parece que era isso que o ávido homem tentava evitar. O medo de perder a sanidade. Medo de se escutar  nessa posição de vazio. "Não vejo a quem culpar", diz Mr. Lopez, o deus. E quem poderia ser o culpado, se o próprio deus não o é? "Não vejo nenhum resultado a esperar, não acredito que valha a pena; cansei de tentar, desisto", complementa ele entre lágrimas. E eu ratifico-lhe a visada. "Não podia parar o terremoto; não pode consertar a cidade; e nunca vai curar Nathaniel", desfere à queima-roupa a ouvinte, que então se fez falante, porta-voz da incompletude na anunciação de nossa mediocridade. Nos resta só-listas: coisas para fazer, coisas que queremos e pelas quais nos enganamos, coisas que somos, sozinhos. Carregar nosso passado a tiracolo, num carrinho de supermercado, sabendo que nada há além de nossas próprias fantasias.
Nota: Filme "O Solista", 2009.

27 de abr. de 2010

De flatus vocis

"Ai querido assim não podemos continuar vivendo.
Ai querido assim não podemos continuar.
Ai querido assim não podemos.
Ai querido assim não.
Ai querido assim.
Ai querido.
Ai."

Cabas (1982).

Ele disse: sabe quando a gente precisa ficar repetindo uma coisa para não esquecer?
- Sei;
- Então, é isso que você está fazendo. Se você acredita, não precisa ficar repetindo aos quatro ventos. Você não está tentando me convencer, mas se convencer de você mesma.

17 de abr. de 2010

Micro conto da ilusão

Ela perdeu todos os seus recados e ficou puta com a opção de transladação do Blogger. Decidiu que nunca mais mudaria. Coitada, como se pudesse...

6 de fev. de 2010

Vamos todos dar as patas

_Então quer dizer que o bicho pensa?_ morria em gargalhadas João, operário e ateu, adepto ao cepticismo desde que se reconheceu. As aulas de catecismo a que fora obrigado a ir não haviam tirado a dúvida da sua cabeça e desde então começou um balé, pulando de crença em crença, de clube em clube, buscando por algo... que nem ele mesmo sabia o que era. E no final era isso, João apenas não conseguia acreditar em nada. E a descrença servia-lhe como escapatória da angústia da dúvida, pelo menos em parte.
Naquele dia em que ouviu o colega falando sobre como um cão tinha para ele mais valor que um amigo, que o cachorro amava incondicionalmente e fazia de tudo para o dono se sentir a pessoa mais importante, a estrépita gargalhada não lhe foi possível segurar. Não que nunca tivesse ouvido isso, mas é que agora percebia o fundo de sentido que isso continha.
Mas João estava acostumado; pegou suas coisas, a caixa de ferramentas e saiu silenciosamente, sem esperar resposta. Já as tinha todas. E acreditou febrilmente nelas.

29 de jan. de 2010

Da Re-petição (e de uma Clara que não fosse de Drummond)

Clara passeava no jardim e tudo era igual ao redor dela: todo dia o mesmo sol, os mesmos passarinhos cantantes, a mesma ironia de viver. Clara reclamava da vida como um cão que reclama seu osso; pensava que tinha direito a mais do que esta a regalava. Não, mais, achava que nada tinha vindo de presente mesmo, então a petição lhe era certa por mérito. Por toda sua vivência atormentara-lhe um sentimento infindo de que aquele corpo que passeava no jardim, aquela voz que saía de uma boca conhecida não era condizente. E tudo o que fizera fora para tentar ser condizente. E nada, até ali, havia adiantado muito: estava no mesmo lugar, não estava? E Clara repetia mentalmente seus desejos, como um mantra capaz de lhe trazer a mudança... o que ela não imaginava é que naquela manhã, quando tombou sobre um arbusto, num acesso lancinante de dor, tudo ainda continuava igual; a única coisa que mudara foi sua pergunta: como me deixei chegar a este ponto?

18 de ago. de 2009

Citação do dia: Lacan

"Somente os cretinos imbecis, do tipo do senhor Blondel, o psiquiatra, podem levantar objeções, em nome de uma pretensa consciência mórbida inefável da vivência do outro, ao que não se apresenta como inefável, mas como articulado, e que como tal deveria ser recusado em razão de uma confusão que provém de as pessoas acreditarem que o que não se articula está mais além, quando não é nada disso: o que está mais além se articula."
Isso diz um pouco da nossa pretensa parolagem sobre o que achamos que vemos, quando é o que não vemos que pode dizer alguma coisa... e, por mais que diga, nunca digo por completo, uma vez que é o inefável.

27 de mar. de 2007

Diálogo com uma Porta (uma porta sábia)

Guerreiro: "Quem é lá? Quem é lá? que os olhos malditos confundem-se e fitam buraco fechado, visão retilínea
dúvida no ar, não sei o q vejo
(se é q eu vejo)
me mande um recado
porq já me sei insano
com esta visão confirmo o ditado
e então se concretiza aquela profecia..."
Porta: "O q vc vê
não é o q eu vejo
seu mundo real não é realmente
e a visão reta, esta é a pior
inimiga da verdade, imprópria pra um guerreiro
q tem como meta (sei disso) simples limiar
de um mundo ilusório
pra um mundo ideal...
faça seu pedido
porq hoje (e apenas hoje)
estou disposto a realizá-lo."
Guerreiro (assustado): "Oh, porta falante
rendo-me aqui, deslocado e faltante
voando por tudo, acima de todos
porém protegido (ainda com medo) por capa de luz...
se o q vejo só eu vejo
então posso não estar vendo
uma porta q fala!
e q ainda tem bigode (porta macho, sin señor!)
estando estrangeiro, oh! porta bilíngüe
como posso saber se o rei q me habita
viverá eternamente?"
Porta: "Oh, nobre guerreiro!
nunca saberás, a verdade inexiste
a sanidade inexiste
a sorte inexiste...e ainda existimos!
seja rei no seu mundo
seja rei vc mesmo enquanto ainda pode
porq na aurora, isso mudará..."
Guerreiro: "Relatividade? Teoria do caos? Num mundo caótico
mas tão surreal...
de onde vem essa voz
onde vejo esse rosto (de bigodes)...
isto está em mim, ou está em vc?"
Porta: (silencia)
Guerreiro: (tão certo da dúvida, pára de perguntar, apenas fala:)
"Não sei o q penso, não sei quem eu sou
apenas viajo, vôo, viajo...
e pelas andanças encontro pousada
em estados psicodélicos,
em países inusitados;
e fico até de manhã, q é o meu tempo
não mais q isso (8 horas apenas)...
Um dia descubro
q não há nada a descobrir e vou embora."
Atravessando o limiar da porta;
Odonata.

15 de mar. de 2007

Presente para o meu Objeto de Testes

Querido Objeto de Testes;
Tendo em vista meus recentes conhecimentos sobre comportamento, venho por meio desta descrever uma ferramenta que será de grande valia nos futuros procedimentos de teste comportamentais com Vs. Senhoria, a qual lhe será dado como presente:
Especificações físicas do modelo ELT-02, a versão mais atualizada do fabricante: este equipamento é composto por duas unidades operacionais separadas - gaiola e controle; a estrutura da gaiola é de alumínio anodizado cinza fosco (medidas condizentes com o tamanho do objeto); o piso possui grades paralelas em aço inoxidável; na parede lateral um bebedouro e acima uma barra, q pressionada aciona um microinterruptor que leva o pescador até a cuba de água e o tráz com uma gota. Acima orifícios para saída de estimulação sonora e, ao lado destes, um vidro transparente para passagem de luz; o fechamento da gaiola é feito pelo lado anterior, com vidro fumê. A unidade de controle consta de um módulo em alumínio anodizado e laterais em cerejeira (medidas padronizadas); os circuitos e controles do painel: chave de alimentação energética, liga/desliga, com indicador luminoso na cor vermelha; chave comutadora para acionamento do bebedouro para esquemas de respostas e reforços; controle de estímulo luminoso em 4 intensidades e controle de estímulo aversivo (choque elétrico); controle de estímulos sonoros; cronômetro digital. O painel traseiro da unidade tem um porta-fusível, uma entrada de cabo de força e uma tomada de 11 pinos para conexão do cabo na gaiola.
Atenciosamente;
Odonata.

5 de mar. de 2007

Reticências (do objeto de testes e da cientificidade da coisa)

Venho com esse post fazer uma reticência: estou estudando comportamentalismo e nas aulas práticas, nosso objetivo é condicionar o comportamento de uma rata (a nossa, minha e da Patricia, se chama Britney), na famosa Caixa de Skinner, um dos primeiros comportamentalistas; além de Skinner, temos também o Watson, q foi o pioneiro da corrente behaviorista e fez experiências com bebês e animais, pois julgava q tudo é uma resposta a um estímulo externo e q os comportamentos dos animais são semelhantes aos dos homens (já não gostei dele, nem da sua linha, hehehe). Então, ouvindo tudo isso acabei lembrando do nosso amigo Doidus, q, por considerar-se um objeto e eu uma máquina de testes, com certeza, se fosse estudar psicologia, se penderia à corrente comportamentalista. Pois bem, quero dizer q o post anterior foi sarcástico, ou seja, não concordo com o Doidus doido; e também q não vejo nada de interessante em condicionar ratos pra depois fazer analogia com seres humanos (apesar dos comportamentalistas negarem, eles acabam sim achando q o homem é uma máquina, influenciável e totalmente condicionável; um objeto moldável, 100% observável e modificável). Sou bem mais o Freud (podem criticar, mas ele era o cara); tenho certeza q todos podem entendê-lo e apreciar seus pensamentos "prafrentex"; e, se ao final do estudo, concluírem q não concordam com suas teorias, ao menos terão q concordar q ele era um cara bem à frente de sua época; e corajoso, diga-se de passagem. Nada de coisas observáveis, prefiro as obscuras e inexplicáveis, um obstáculo às mentes médias (fazendo média, hahaha). No mais, concluo com um pensamento positivo, no sentido de tirarem a rata da grade curricular, hahahah (brincadeira, deve ter um objetivo prático e aplicável isso, e ainda vou descobrir qual, hauhauha).


Inconscientemente;

Odonata.

3 de mar. de 2007

Ao meu digníssimo e obediente Objeto de Testes


Como todos sabem, vivemos rodeados por máquinas; a máquina pública (q promete ser enxuta e eficiente neste ano, mas q sempre fica estagnada, dando uma sacudidela apenas com o vuco-vuco dos escândalos, os quais já quase caíram no esquecimento); máquina de fazer pão, de lavar roupa, de lavar louças; máquina de cortar grama (coisa do mundo moderno e do homem sem tempo); máquina de comunicação, q inclui telefone, computador e internet (ferramentas indispensáveis nos dias de hoje); e o próprio ser humano, q é um computador com sentimentos e q deu origem à todas as outras máquinas existentes, mas q, de tanto criar, pode até virar um objeto, uma presa da própria criação. Agora vocês estão pensando, qual o intuito desse texto, não é? Dias atrás o nosso amigo Doidus se rebelou contra a minha pessoa, por julgar-me uma máquina de testes; é q eu fico observando muito tudo... ora, a arte da observação requer técnicas por vezes mal interpretadas...e foi o q aconteceu. Depois de muito discutir e espernear, ele próprio acabou por confessar q gosta de ser testado; então essa é pra vc Doidus, meu obediente Objeto de Testes:
No início éramos máquinas com sentimentos; ainda não tínhamos desenvolvido signos nem significações, linguagem precária, pouco conhecimento sobre o mundo...aliás, o mundo era bem menor (se bem q ele continua tão pequeno...). E fêz-se um estalo, e do estalo deu-se o insight. Da clareza de idéias à confusão foi um salto. E nessa confusão, nesse turbilhão de sentimentos em q o mundo se transformou, a antiga melancolia virou depressão, e quem era gênio agora é louco (a insanidade nem é mais símbolo de felicidade, acreditem)...O médico faz exames pra diagnosticar doenças e tratá-las, existe profissional pra tudo, e o psicólogo é pra doenças da alma...agora, quem ainda não é psicólogo, o q é? É uma simples Máquina de Testes, estática, sem voz, sem ação, programada para matar (ops, testar). O testado, não passa de um objeto, também imóvel, plástico, submisso, vigiado 25 horas por dia...cada ação contrária é tomada como mais uma prova; se se rebelar, outra prova, se se portar bem, idem...ao final do teste (se é q ele acaba algum dia), se passar, o objeto recebe um sêlo: "amigo"...mas nunca poderá esquecer q sempre será um objeto de testes.
Ironicamente;
Odonata.