3 de out. de 2010

Era um fim de tarde. Me lembro que eu estava sentada na soleira de casa com minhas galochas novas quando ela chegou. 08 anos, eu acho.
Não senti medo; minha avó enferma me botava medo. Suas mãos eram frias e o olhar comprido. A boca frouxa entreaberta a pedir mais uma colherada. E aquele ar de complascência de quem sabe que o fim se aproxima.
Pensava nela assim, coisa de criança.
Mas a morte, ela não bota medo em ninguém.

14 de jul. de 2010

Urros

Daqui, do escuro
eu olho, acuro
no grito do apuro;
não vejo, auguro
conjeturo, comensuro...
além eu fulguro.
No espelho afiguro
e a imagem censuro;
prematuro, procuro,
inauguro, suturo;
emolduro, enclausuro
e preso, me curo!
Transfiguro e inauguro
um novo fu(tu)ro
rasuro, costuro, me aturo
e me atiro, juro.

15 de jun. de 2010

O possível de uma relação inexistente

Falar, para além de uma função organizadora, tem uma função social. Nunca entendi direito porque eu não me dava muito bem no social; essa é uma construção que ainda estou fazendo. Quando se fala, espera-se do outro uma resposta ratificadora daquilo que se disse (e aqui, ratificar não necessariamente quer dizer concordar); a questão está é que esta espera, é do Outro que esperamos, do nosso próprio eu-social. E aí está todo o trabalho do analista, o de não responder dessa posição alienante, mas de Outro lugar.
Quando a resposta que as pessoas esperam não vem, é um vazio que é devolvido... isso tem a ver com a construção de que eu falava: minha resposta sempre foi o silêncio. Hoje em dia, ele não está mais tão presente, o que me coloca em outro problema: como responder sem esperar um envolvimento daquele que fala com o que ele fala? E mais, como não me envolver com o que é dito?
Li alhures que a psicanálise é uma peste. Concordo. Uma vez experimentada, não há como dela sair, não há mais como falar sem nada dizer, não há mais como alienar-se a uma fala vazia. O que se espera é outra coisa, aquilo que se chama um sentido pleno.
Falar é, mais do que tudo, uma relação sexual, naquele ponto de uma relação possível, já que ela inexiste.

3 de jun. de 2010

O Solista

Saber que a vida não tem sentido não é para qualquer um. Para ser poético, é um dom pelo qual se luta constantemente, infindavelmente. Se me expresso melhor, queria mesmo dizer que o dom está em continuar vivendo sob essa ameaça, se assim posso chamar a falta-a-ser. Dói e por isso não se arrisca nem dizer, porque a palavra é ela própria uma ameaça, um prelúdio de ação, que mesmo assim age. Uma vida sem sentido. Parece que era isso que o ávido homem tentava evitar. O medo de perder a sanidade. Medo de se escutar  nessa posição de vazio. "Não vejo a quem culpar", diz Mr. Lopez, o deus. E quem poderia ser o culpado, se o próprio deus não o é? "Não vejo nenhum resultado a esperar, não acredito que valha a pena; cansei de tentar, desisto", complementa ele entre lágrimas. E eu ratifico-lhe a visada. "Não podia parar o terremoto; não pode consertar a cidade; e nunca vai curar Nathaniel", desfere à queima-roupa a ouvinte, que então se fez falante, porta-voz da incompletude na anunciação de nossa mediocridade. Nos resta só-listas: coisas para fazer, coisas que queremos e pelas quais nos enganamos, coisas que somos, sozinhos. Carregar nosso passado a tiracolo, num carrinho de supermercado, sabendo que nada há além de nossas próprias fantasias.
Nota: Filme "O Solista", 2009.

27 de abr. de 2010

De flatus vocis

"Ai querido assim não podemos continuar vivendo.
Ai querido assim não podemos continuar.
Ai querido assim não podemos.
Ai querido assim não.
Ai querido assim.
Ai querido.
Ai."

Cabas (1982).

Ele disse: sabe quando a gente precisa ficar repetindo uma coisa para não esquecer?
- Sei;
- Então, é isso que você está fazendo. Se você acredita, não precisa ficar repetindo aos quatro ventos. Você não está tentando me convencer, mas se convencer de você mesma.

17 de abr. de 2010

Micro conto da ilusão

Ela perdeu todos os seus recados e ficou puta com a opção de transladação do Blogger. Decidiu que nunca mais mudaria. Coitada, como se pudesse...

6 de fev. de 2010

Vamos todos dar as patas

_Então quer dizer que o bicho pensa?_ morria em gargalhadas João, operário e ateu, adepto ao cepticismo desde que se reconheceu. As aulas de catecismo a que fora obrigado a ir não haviam tirado a dúvida da sua cabeça e desde então começou um balé, pulando de crença em crença, de clube em clube, buscando por algo... que nem ele mesmo sabia o que era. E no final era isso, João apenas não conseguia acreditar em nada. E a descrença servia-lhe como escapatória da angústia da dúvida, pelo menos em parte.
Naquele dia em que ouviu o colega falando sobre como um cão tinha para ele mais valor que um amigo, que o cachorro amava incondicionalmente e fazia de tudo para o dono se sentir a pessoa mais importante, a estrépita gargalhada não lhe foi possível segurar. Não que nunca tivesse ouvido isso, mas é que agora percebia o fundo de sentido que isso continha.
Mas João estava acostumado; pegou suas coisas, a caixa de ferramentas e saiu silenciosamente, sem esperar resposta. Já as tinha todas. E acreditou febrilmente nelas.

29 de jan. de 2010

Da Re-petição (e de uma Clara que não fosse de Drummond)

Clara passeava no jardim e tudo era igual ao redor dela: todo dia o mesmo sol, os mesmos passarinhos cantantes, a mesma ironia de viver. Clara reclamava da vida como um cão que reclama seu osso; pensava que tinha direito a mais do que esta a regalava. Não, mais, achava que nada tinha vindo de presente mesmo, então a petição lhe era certa por mérito. Por toda sua vivência atormentara-lhe um sentimento infindo de que aquele corpo que passeava no jardim, aquela voz que saía de uma boca conhecida não era condizente. E tudo o que fizera fora para tentar ser condizente. E nada, até ali, havia adiantado muito: estava no mesmo lugar, não estava? E Clara repetia mentalmente seus desejos, como um mantra capaz de lhe trazer a mudança... o que ela não imaginava é que naquela manhã, quando tombou sobre um arbusto, num acesso lancinante de dor, tudo ainda continuava igual; a única coisa que mudara foi sua pergunta: como me deixei chegar a este ponto?